Dois velhos conhecidos encontram-se e trocam saberes sobre a vida.
- Encontrei a Vera ontem, no hortifruti. Ela deixou-lhe um abraço bem apertado e reclamou do seu sumiço. Mas reconheceu que ela também anda sumida...
- Ah, saudade da Vera. Boa de conversa. Principalmente das conversas não planejadas como deve ter sido a sua, ontem.
- Exatamente. Ela estava bem animada porque decidiu abraçar causas. Empenhar-se por causas, sabe? E eu gostei muito do que ela me contou. Ela tem um grande círculo de conhecidos, você sabe. Vera é muito popular.
- Ela está arregimentando esse pessoal para alguma campanha?
- Não. Ela decidiu afastar-se silenciosamente dos que ela chama de religiotas, racistas, homofóbicos e extremistas, tanto os de direita como os de esquerda.
- Eu sempre rio quando ela emprega o termo religiota. Mas como funciona esse afastamento silencioso? É uma ruptura?
- Não. Ela simplesmente deixa de compartilhar informações e não responde às que recebe por WhatsApp, pelo Instagram e pelo Facebook. X e Threads ela nem usa. Afastar-se silenciosamente é sumir sem retrucar nem polemizar.
- Eu faço algo parecido e acho que você também. Alguns dos meus contatos pararam com aquelas mensagens matinais como “Deus tem algo de bom reservado para o seu dia, hoje”, ou “Deus abençoará ricamente o seu dia”.
- Essas eu nem leio; deleto imediatamente e não mando emoji de volta. Nós dois já somos velhos, mas não somos alienados. Engajar-se na luta por direitos iguais sempre me cativou. E não queremos mais ser catequizados...
- Nós não podemos nos calar principalmente agora que ventos de extrema-direita têm retirado direitos de cidadãos. Precisamos saber dizer não a todos os que querem nos impor seu modo de vida, sejam eles da direita ou da esquerda.
- Eu entendo a motivação da Vera. Que tipo de conversa ela teria com alguém que diz que os problemas da vida são causados pela falta de Jesus no coração? Ou com alguém que acha que homossexualidade se cura com uma surra? Ou com alguém que acha que os pretos estão tendo muito espaço?
- Essa é a causa: viva, mas deixe o outro viver. E viver a vida que escolheu...