Lua de mel: análise da obra, por Leoni Feingold – RS, 31/01/2023.
O conto de hoje segue o conto O amor cura a culpa e o pecado e traz os personagens Rafael e Henrique ao centro da trama. Os outros dois, o jornalista J e o agora professor P aparecem, mas lateralmente. O conto é de autoria de RH Götz-Licht, e está disponível no site Recanto das Letras ou no site do escritor [https://renegotzlicht.prosaeverso.net/], sob e-books, rolar a tela, procurar pelo título e baixá-lo sem custo.
Rafael e Henrique têm, finalmente, sua lua de mel. Para a análise dessa obra meu cuidado foi redobrado para evitar que eu antecipasse pormenores que revelariam ao leitor o que ele mesmo precisa encontrar na leitura do conto. Vi-me por diversas vezes escrevendo e apagando para evitar incorrer nesse erro grave de antecipar o que precisa ser lido, sem fornecer pistas.
Rafael, um analista de investimentos financeiros de boa reputação no mercado, trabalhava para uma corretora de valores imobiliários atrelada a um prestigioso banco. Um olheiro de uma agência de publicidade viu em Rafael a união perfeita entre beleza masculina e conhecimento técnico. Rafael foi convidado a estrelar campanhas publicitárias para o banco e a corretora, emprestando sua presença “estonteante” e seu vasta experiência no mercado de renda variável.
Ao longo das mudanças em sua carreira, sempre contou com o apoio irrestrito do seu marido, o professor-doutor Henrique. Não demorou muito para Rafael chamar a atenção da concorrência e receber uma oferta irrecusável. Acabou aceitando a proposta sabendo que começaria com uma viagem internacional para inteirar-se de pormenores essenciais à sua nova atuação.
Nesse ponto, eu chamo a atenção do leitor para observar a quem Rafael dirige suas primeiras preocupações. Henrique nota esse misto de sentimentos em seu marido, não só o apoia como estimula-o para a mudança e para a viagem. Entra em cena um dispositivo que terá papel decisivo nessa turbulência enfrentada por Rafael. Trata-se de uma frase que é repetida por quatro vezes: “Foi assim que me veio meu bem maior”. E por aqui eu preciso parar.
Rafael visita o modelo fotográfico internado no hospital; os dois são freelancers da mesma agência. Rafael e o modelo são descritos como homens de beleza deslumbrante. Como o ser e o sentir-se atraente afeta um homem? Como a beleza pode ser um facilitador, ao mesmo tempo em que labuta no território do fugaz? Essas e outras questões estão entre as abordadas pelo autor.
Aqui vejo-me obrigado a um salto de conteúdo para não afetar o “Aha!” do leitor. Mencionarei passagens que vivamente me encantaram pela beleza plástica, pela pureza, pela verdade.
O autor descreve um beijo de Rafael em Henrique com as seguintes palavras: “...não é ritual, não é encenação, não é protocolo, não é aparência. É verdade! É certeza!” Aqui, essa frase tirada do contexto da narrativa pode não empolgar tanto, mas no seu lócus tem força e poder.
Retomo o que já comentei na análise do conto anterior quando mencionei mindfulness: o autor faz os personagens estarem presentes no que fazem: se Rafael beija Henrique, ele vem junto e está todo no beijo.
Outra cena que me arrepiou: Rafael e Henrique estão em um restaurante saboreando massas. Rafael pediu espaguete e, em dado momento, repete a icônica cena do filme A Dama e o Vagabundo. Dois belos homens em um espaço público sendo quem são e como são; a certeza do que fazem torna-os intocáveis.
A cena seguinte passa-se em um bar com pista de dança. Rafael, com sua barba preta e espessa e sua voz de baixo-barítono, pede ao DJ para tocar uma música: The Man I love. Nenhum DJ resistiria àquele pedido. A música começa e Rafael dança-a com Henrique e a descrição do autor para as reações dos presentes ao bar provocará um turbilhão de emoções no leitor.
Outra cena sobre a qual eu infelizmente nada posso escrever passa-se num restaurante onde saboreiam pratos austro-húngaros. Vale pela riqueza do cardápio e por tudo o que lá ocorrerá. Adianto que o leitor se sentirá sentado a uma das mesas do restaurante e participando de um momento absurdamente inesquecível.
Um capítulo - esse denso e obscuro - é dedicado a relatar o suicídio do filho de um casal que Rafael e Henrique conhecem em seu primeiro encontro, e por quem imediatamente sentem profundo afeto. Um suicídio previsto pelos pais, dadas as circunstâncias dolorosas enfrentadas por esse filho. Aqui, o autor costura uma ponte com um sentimento expresso por Henrique sobre não saber o que faria da sua vida, se Rafael viesse a faltar-lhe.
O leitor pode-se perguntar: mas de onde surge essa narrativa do suicídio? Aqui, na minha análise, concordo que possa parecer uma inserção sem o menor sentido. Na narrativa do conto há os desdobramentos e os pormenores necessários que permitem ao leitor atento assimilar a conexão desse capítulo com o relacionamento vivenciado por Rafael e Henrique. Nada no conto aparece sem uma intenção, seja para contraste ou reafirmação.
Um outro capítulo que começa despretensiosamente, mas logo dá pistas sobre a que veio, apresenta Rafael e Henrique caminhando por um parque, aproveitando a lua de mel, quando quase tropeçam num rapaz que se revela ser um colega de trabalho de Rafael. Esse colega que quase nada sabe sobre a vida pessoal de Rafael nota a aliança e a forma carinhosa com que Rafael abraça Henrique.
A partir desse encontro, o autor mostrará como Rafael e Henrique - apenas por serem quem são e como são – impactarão a vida desse colega de trabalho. Um quarto personagem aparecerá para juntar-se ao trio, e os dois recém-chegados verão suas vidas transformarem-se substancialmente ao entrarem em contato com a verdade e a certeza que emanam de Rafael e Henrique.
Parece-me que o autor acredita na máxima “quando o discípulo está pronto, o mestre aparece”: quem consegue ficar imune diante das expressões de zelo, de cuidado, de carinho, de admiração, de importância que Rafael e Henrique cuidadosamente devotam um ao outro? Os que são capazes de se elevarem para acima das vicissitudes humanas, acabam por atrair aqueles que se colocam em sintonia semelhante.
Esse “elevar-se para além de si mesmo” vem do amor maduro; nunca do mero desejo.