O Amor cura a culpa e o pecado: análise da obra, por Leoni Feingold – RS, 26/01/2023.
O conto do título de hoje continua a narrativa apresentada no conto O Amor encontra a Amizade, e nos traz de volta dois personagens, o jornalista e o ex-padre. Ainda não descobri porque o autor sempre se refere ao jornalista e ao ex-padre como J e P, respectivamente. O conto é de autoria de RH Götz-Licht, e está disponível no site Recanto das Letras ou no site do escritor [https://renegotzlicht.prosaeverso.net/], sob e-books, rolar a tela, procurar pelo título e baixá-lo sem custo.
O conto começa com uma breve retrospectiva para situar o leitor: J e P - o jornalista e o agora professor - retornaram de sua viagem de luz de mel; estão, portanto oficialmente casados. O pedido de casamento e a cerimônia foram abordados extensivamente no conto anterior, O Amor encontra a Amizade. Essa introdução expande-se para abordar um valor presente nas vidas desses dois personagens, o jornalista e o ex-padre. Esse valor chama-se gratidão.
A descrição do autor para o relacionamento de J e P inicia-se no primeiro conto da série, Confissões sobre o Cristianismo. O jornalista J consegue convencer o padre P para conceder-lhe uma entrevista. Ao longo do transcorrer da entrevista, J vê-se envolvido no drama pessoal do padre: seus conflitos com a doutrina, a hipocrisia e a perda de sentido parar seu ofício. Aos poucos forma-se um vínculo de afeto entre os dois, em que a gratidão está presente.
Na etapa seguinte, quando P desliga-se da Igreja, J continua a acompanhá-lo e constata que P deixou a Igreja, mas a Igreja não deixará P tão rapidamente. Enquanto para muitos um jantar à luz de velas produziria uma atmosfera intimista, para P, velas remetem-no a um passado que ele quer e precisa expurgar. O autor mostra o impacto da associação de conteúdos mentais a certos símbolos. A gratidão faz-se presente pelo apoio e paciência com que J lida com o estado de P.
No conto anterior, acima citado, o jornalista J e o agora professor P conhecem Rafael e Henrique e os quatro acabam por tornar-se amigos próximos, o que explica o título em que o amor encontra a amizade. Numa passagem em que conversam apenas Rafael e P, Rafael diz-lhe que “os dois têm o dever de cuidar muito bem de seus maridos”, ou seja, Rafael cuidando de Henrique, e P cuidando de J. Essa singeleza encanta-me pelo momento de pureza nele contido. E de elevação.
O modelo fotográfico apresentado no conto anterior, doente e hospitalizado, acaba por apaixonar-se por P. O leitor é apresentado à resposta natural de um homem muito carente, cheio de desejo, que apenas é tratado com atenção e respeito por alguém por quem julga-se apaixonado. A evidência do amor pelo desejo, e não pela outra pessoa, ainda potencializada pela carência afetiva. Nesse episódio, há como que uma retomada do que significa viver de migalhas de amor.
Acredito que muitos leitores serão surpreendidos pela solução encontrada pelo autor, para P lidar com essa situação e, especialmente, como J e Rafael se posicionarão diante desse novo acontecimento. Embora possam parecer raros, gestos de elevação fazem bem à mente. A mim, em particular, pessoas que manifestam comportamentos elevados sinalizam que há esperança para a humanidade; se a mediocridade contagia, a elevação também pode fazê-lo.
O autor produziu um outro conto intitulado O caso Matsunaga, já disponível em seu site, que é composto de uma parte introdutória e de uma entrevista conduzida pelo nosso já conhecido jornalista J, com um reverendo anglicano que celebrou o casamento de Elize e Marcos Matsunaga, batizou sua filha, teve certa convivência com eles até o trágico desfecho em que prestou depoimentos à polícia e à Justiça. Suponho que isso seja do conhecimento do leitor, pela ampla repercussão que o caso recebeu.
O autor também produziu um conto intitulado As diferenças entre Igreja Anglicana e Igreja Romana, em que o jornalista J também entrevista o mesmo reverendo e que também está disponível no site do escritor. O autor nos garante que as duas entrevistas não são peça de ficção; são narrativas reais! Mas, por que faço agora toda essa apresentação?
Há um elo nessa trama: o jornalista J. Ele, J, está casado com P, um ex-padre, e tem como amigos Rafael e Henrique. O autor produz uma ponte lógica e verossímil de modo que o reverendo, um sacerdote como P, embora da Igreja Anglicana, se torne próximo aos quatro. O leitor descobrirá alguns outros aspectos comuns que facilitarão a aproximação e o estabelecimento de mais um frutuoso vínculo de amizade.
Nesse círculo expandido dos cinco, há espaço para conversas sobre diversos temas, com destaque para a dimensão religiosa. Discorrem sobre igrejas em geral, com ênfase no falso moralismo, na insuportável hipocrisia, na acepção de pessoas, no absurdo interesse financeiro.
Parece que os cinco não mais acreditam na figura do Deus bíblico nem do Deus das doutrinas das igrejas: esse Deus foi criado pelo homem, à sua imagem e semelhança. É interessante refletir sobre os argumentos empregados e que estão lastreados nas vivências de um padre e de um reverendo de duas grandes igrejas.
Deixo para o fim comentar sobre um trecho que pode parecer perdido no meio da narrativa de P ao recordar-se de todo o esforço que J empreendeu ao longo de sua caminhada libertadora. O corpo de P começava a somatizar todo o peso dos conteúdos psíquicos que culminaram com sua saída da Igreja. Começa com rinite, evolui para tosse com coriza e pneumonia.
P precisa tomar antibiótico forte que lhe agride o trato digestivo. J está sempre do seu lado, como amigo valioso, para cuidar da saúde física e mental de P. Nessa noite, J dorme ao lado de P; se há desejo dos dois lados, nada, jamais, fora externado por nenhuma das partes; o momento ainda não havia chegado. De madrugada, P tem um espasmo, vomita tudo o que havia no estômago atingindo a cama e principalmente J.
É um deleite acompanhar como o autor converte uma cena que provoca nojo numa demonstração de amor incondicional. J levanta-se para cuidar de P: socorrê-lo, limpá-lo, devolver-lhe o bem-estar, para só depois trocar a roupa da cama e cuidar de se limpar.
P reconhece nesse gesto que é amado profundamente por J e não mais consegue dissimular o sentimento que nutre por J. É impressionante como uma cena asquerosa quando bem trabalhada ganha contornos de uma sensibilidade tocante. Esse gesto pungente somado aos anteriores levam o leitor a aceitar a tese do autor, de que o amor cura a culpa e o pecado.