O fim das migalhas de Amor: análise da obra, por Leoni Feingold – RS, 21/01/2023.
O conto do título de hoje continua a narrativa apresentada no conto O Amor encontra a Amizade, e nos traz de volta dois personagens, Rafael e Henrique, que protagonizam a mais sublime história de amor de que me recordo um dia ter lido.
O conto é de autoria de RH Götz-Licht, e está disponível no site Recanto das Letras ou no site do escritor [https://renegotzlicht.prosaeverso.net/], sob e-books, rolar a tela, procurar pelo título e baixá-lo sem custo.
Embora seja presença - uma assinatura - nos contos desse autor, foi nesse que me fixei nas imagens criadas pelos personagens Rafael e Henrique ao expressarem seu amor um pelo outro. O escritor suprime por completo o uso das palavras e põe no seu lugar olhares tendo o silêncio como pano de fundo. E emprega o abraço, amplo e forte, como veículo para comunicar sentimentos. “O vento parou de assobiar para contemplá-los...” proporciona uma ideia da elevação que os personagens imprimem no leitor com sua forma de amar.
De fato, palavras e sons parecem-me supérfluos em algumas circunstâncias e, nessas especialmente, dedicadas a comunicar a existência e a intensidade desse sentimento tão nobre chamado amor. Há destaque para o namorar e mimar como modos de atender aos imperativos do desejo.
O autor faz os personagens Rafael e Henrique dignificarem essa palavra “amor”. Numa passagem, no início da narrativa, é angustiante acompanhar o pensamento de Henrique, se Rafael viesse a faltar-lhe: faltar-lhe-ia não só seu grande amor, mas todo o sentido de sua vida.
Henrique rememora como um dia perdera o grande amor da sua vida, aquele que o ensinou a amar e, por conseguinte, o quanto teve de sofrer; sofre muito só quem muito amou. O temor que essa sina se repita agora com Rafael é imaginário, mas perturbador. Nesse ponto, as “migalhas” do título começam a ficar compreensíveis: Henrique está deixando o mundo em que “... não importa quem você é; importa o que você parece ser...”.
Uma doença de um modelo fotográfico, personagem coadjuvante, é o pano de fundo para o autor abordar um outro sentimento muito forte no ser humano: a inveja. Inveja daquele que encontrou um amor de verdade, para a vida. Ao atentar-me ao modo como o autor introduz a ação da inveja veio-me à mente o colossal trabalho de Melanie Klein, uma discípula de Sigmund Freud: o invejoso quer possuir o objeto da inveja, apenas para tirá-lo do outro; se chegar a possuir o objeto invejado não saberá o que fazer com ele.
O autor vale-se da beleza do modelo fotográfico que se encontra debilitado para escancarar a sua transitoriedade: a beleza é circunstancial, é efêmera em contraposição ao amor que pode ser permanente. O conceito de mindfulness é inteligentemente empregado: quando Rafael beija Henrique, ele vem junto no beijo; quando Rafael abraça Henrique, ele vem junto no abraço. Parece que isso imprime a verdade e a certeza, dois termos que são valiosos ao autor.
Em paralelo à narrativa do enfrentamento da doença do modelo fotográfico - trabalhando a força destrutiva da inveja e a transitoriedade da beleza - ocorre uma narrativa de defesa de tese de doutorado de um candidato atormentado pelas consequências de erros cometidos que lhe custaram seus amores, e o questionamento sobre o que realmente importa na vida. É a resposta didática ao dilema proposto em “o importante é parecer e não ser”.
Essa narrativa é como se fosse um parêntese que sucede a narrativa das manifestações do amor entre Rafael e Henrique e serve ao proposito de introduzir emoções de desconforto ao longo de vários parágrafos. Esse desconforto precisa ser levantado e o autor encontra uma estratégia original e que funciona perfeitamente bem.
Henrique passa a ser um leitor regular de obras do autor desse conto, RH Götz-Licht, e reflete sobre as últimas obras que leu e sobre as conexões que pôde fazer com situações e pessoas. É uma forma de autopromoção, bem-vinda, por sugerir títulos de sonetos e crônicas nos quais valeria correr olhos e mente. Até eu anotei alguns títulos para leitura posterior; a técnica funciona!
Há uma outra seção que também se presta ao papel de atenuar o peso da exposição de emoções desconfortáveis: uma exposição dos hábitos alimentares dos dois personagens centrais, Rafael e Henrique.
Parece-me que a intenção do autor é mostrar que estamos diante de dois homens de integridade ética: aquilo que pensam está alinhado com o que sentem, com o que dizem e com o que fazem. De novo, repito a importância de o autor mostrar personagens gays totalmente distanciados dos estereótipos já desgastados pela rejeição. Rafael e Henrique não são frívolos nem superficiais.
Seus hábitos alimentares vêm a propósito de confirmar essa inserção: não desperdiçam alimentos, reaproveitam eventuais sobras, evitam alimentos ultraprocessados de todo tipo, priorizam temperos naturais em detrimento dos pozinhos de pirlimpimpim. São apreciadores de espresso feito a partir de grãos moídos na hora, de chás naturais e de água gaseificada.
O autor tece cuidadosamente os contornos de Rafael e Henrique: são homens que se amam, são oficialmente casados, portam alianças, não são dados a trejeitos ou maneirismos, andam publicamente de mãos dadas e não hesitam em abraçar-se e beijar-se, se entre eles isso lhes parecer necessário. O autor não os coloca como ativistas de causa alguma, mas como homens que não renunciam a seus direitos: querem ser e não parecer ser; não lhes basta serem tolerados, querem ser aceitos.
Nos seus momentos de intimidade – o autor jamais emprega os termos sexo ou transa – o destaque fica para o cuidado que um tem pelo bem-estar e prazer do outro. O “perfeito estranho” de Mae West para eles é folclore: eles não são estranhos, mas perfeitos um para o outro. Não precisam de acessórios, fetiches ou outras bizarrices: em cada um há do que o outro precisa.
Os dois, como são, constituem um sistema quase fechado; não buscaram a “metade da laranja” porque sempre foram laranja inteira. O encontro dos dois prova que a lei da sinergia existe e funciona: juntos, são mais do que a soma individual dos dois.
É reconfortante ler literatura com essa abordagem para “dormir o sono dos justos” como atesta o autor sobre os dois personagens. Ler esse conto é bom e justo!