Confissões sobre o Cristianismo: análise da obra, por Leoni Feingold – RS, 16/01/2023
Confesso que avancei e entendi ser sensato voltar às origens. O conto do título de hoje é, na verdade, um conto-entrevista e apresenta dois personagens centrais. Na sequência pretendida pelo autor segue o conto Verdade e certeza no Amor e depois, O Amor encontra a Amizade. Esses dois já foram por mim analisados.
Os contos, todos escritos por RH Götz-Licht, estão disponíveis no site Recanto das Letras ou no site do escritor [https://renegotzlicht.prosaeverso.net/], sob e-books, rolar a tela, procurar pelo título e baixá-lo sem custo. O conto que hoje analisarei não é um conto em que a temática gay seja central à trama, embora seja abordada sutilmente em algumas passagens, sobretudo na última parte do conto.
Já adianto ao leitor que essa abordagem que chamei de sutil desempenha importante papel no conto subsequente, em que os dois personagens reaparecem, O Amor encontra a Amizade. Penso tratar-se de estratégia do autor para propiciar novos desdobramentos, sem que tenha de fabricar algum artifício para justificar a continuidade pretendida.
Fiz os cálculos: metade da narrativa do conto é dedicada à entrevista em que as “confissões” do título aparecem explicitamente. Que entrevista é essa? Um padre da Igreja tem seu nome veiculado nas mídias sociais, recebendo posts de apoio e posts de ataque. Um jornalista fica intrigado e vê seu faro aguçar-se diante de uma possível matéria que poderia desenvolver.
O jornalista põe-se a campo para investigar se esse imbróglio envolvendo o padre tem origem em questões político-partidárias, de abusos sexuais ou de desvios financeiros. A resposta que o jornalista encontra logo de início será crucial para sua estratégia de aproximar-se do padre para obter uma entrevista.
Em contraposição à chamada imprensa marrom, aquela imprensa que exalta o sensacionalismo, com pouco compromisso com a autenticidade, o autor nos apresenta um jornalista que tem um profundo compromisso com a verdade, mas não aquela obtida a qualquer preço, como se “os fins justificassem os meios”. Trata-se de um jornalista que coloca seus valores à frente do seu trabalho.
Já é marca do autor nos apresentar um profissional cujo lado humano é nobre, honrado, digno, decente. Parece-me uma escolha deliberada, mesmo sob risco de ser rotulado como ingênuo ou adocicado. Para mim, é um indício que esse personagem revelar-se-á gay, já que o autor parece querer chacoalhar estereótipos de homens gays, o que considero particularmente apropriado.
O jornalista apresenta-se revestido da sua verdade como pessoa e parece que funciona; o padre, inicialmente reticente, concorda em falar com o jornalista e, posteriormente, ser por ele entrevistado. A conexão formada é interessante: a verdade do jornalista encontra-se com a verdade do padre, e o trabalho pode fluir, e fluir em verdade. Nos dois contos anteriormente analisados a verdade tem papel central como valor humano, em contraposição à hipocrisia.
Se a entrevista for lida tendo-se em mente que é um relato doloroso de um homem, um padre, que se vê em conflito consigo, acredito que não cause mal-estar aos que acreditam, que têm fé. O momento da leitura não me parece ser de concordar ou discordar, mas de exercitar a empatia, saber colocar-se no lugar da narrativa do padre para ter uma dimensão do que se passa no seu íntimo, de como isso o perturba e de como ele tenta escalar esse poço no qual se encontra.
O jornalista que o entrevista tem boa clareza acerca de sua visão pessoal de religiosidade e trabalha-se antes da entrevista, para que seus posicionamentos pessoais não o impeçam de avançar: o jornalista não deve permitir que sua concordância ou discordância afetem a sua busca da verdade daquele relato. Concordar ou discordar das posições do padre, o entrevistado, só atrapalharia o processo.
Nessa interação padre-jornalista o autor vai filigranar os tecidos que os dois vão produzindo ao longo da entrevista. Seus valores, suas necessidades de expressarem a verdade das coisas e de si mesmos, o constante trocar de cadeiras que se dá durante o exercício da empatia produzirá diálogos com conteúdo de uma vida que levam não só os personagens às lágrimas, mas o leitor atento e presente também.
Nesse conto, o autor desenvolve um tratado sobre o sentido da vida e desenrola-o aos poucos, como um grande papiro que guarda sabedorias dos tempos antigos. Momentos marcantes das vidas dos dois personagens são escrutinizados para dar peso e conteúdo à narrativa. A escrita, sempre em linguagem padrão e obedecendo à norma culta imprime seriedade e peso ao texto.
A última parte do conto - aquela que ocorre depois da entrevista e depois de todo o texto ter sido editado e estar pronto para publicação numa revista especializada - mostra como ambos lidam com seus medos, suas culpas e seus pecados. O autor habilmente contrapõe toda a fragilidade humana frente a frente com toda a força humana de superação de si mesmo. O autor também permite que essa caminhada não seja solo, mas favorecida pela presença edificante que padre e jornalista representam um ao outro.
Os personagens desnudam vínculos de amizades que se revelam jamais terem existido como imaginados, revelam suas decepções com a hipocrisia e o utilitarismo presentes nessas amizades, mas não vistos, ou estrategicamente ignorados. Mas essa busca pelo entendimento começa a transcorrer sem aquilo que sempre lhes esteve próximo: a dicotomia culpa & pecado.
O processo da emancipação de um homem requer coragem, determinação e perseverança para progredir. Livrar-se de velhos hábitos que se mostraram inadequados nunca é tarefa fácil de ser empreendida, mas o conto convence o leitor atento de que não só é possível, como necessário para quem busca um salto quântico na trajetória de vida.
Desde o preâmbulo – o texto que prepara a narrativa para a entrevista – até a parte final, passando pela própria entrevista, a escrita conduz o leitor a percorrer uma caminho como se estivesse numa espiral ascendente, rumo a dimensões mais elevadas e amadurecidas da vida em que qualidades humanas existentes, mas nem sempre colocadas à disposição, conduzem os personagens pela via da autorrealização.
Para mim, como crítico literário, exaltar virtudes e qualidades humanas jamais sairá de moda, mesmo que não seja buscado na prateleira das vaidades; valores energizam atitudes que energizam comportamentos que formam hábitos e podem mudar destinos.